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Propaganda, símbolos e guerra cultural: o que está por trás da nova campanha das Havaianas

A recente propaganda das Havaianas provocou uma reação que vai muito além da estética publicitária ou da aceitação do produto. O debate que se instalou nas redes sociais e nos meios de comunicação não diz respeito apenas a sandálias, mas ao uso de símbolos, arquétipos e mensagens subliminares em um país mergulhado em uma guerra cultural cada vez mais explícita.

Não se trata de acusar a campanha de ser panfletária ou eleitoral. O ponto central é outro: a propaganda contemporânea deixou de ser neutra. Ela dialoga com o inconsciente coletivo, ressignifica símbolos tradicionais e se insere em disputas culturais que moldam comportamentos, valores e visões de mundo.

A desconstrução do símbolo do “pé direito”

Na cultura popular ocidental — e especialmente no Brasil — o pé direito sempre esteve associado a sorte, bons presságios, começo positivo. “Entrar com o pé direito” é uma expressão consolidada no imaginário coletivo, anterior a qualquer debate político.

Quando uma campanha publicitária escolhe questionar ou ressignificar esse símbolo, ela não está apenas sendo criativa. Está mexendo em um arquétipo cultural profundo, algo que opera no campo do inconsciente coletivo, como descreveu Carl Jung.

Isoladamente, essa desconstrução poderia ser apenas uma brincadeira sem maiores consequências. No entanto, quando analisada dentro de um conjunto de escolhas simbólicas, ela ganha outro peso.

A escolha da porta-voz não é neutra

Fernanda Torres não é apenas uma atriz talentosa e premiada. Ela é também uma figura pública associada historicamente ao campo cultural progressista, com posicionamentos claros e públicos dentro do espectro da esquerda cultural brasileira.

Na publicidade, escolhas não são aleatórias. Grandes marcas selecionam porta-vozes que comuniquem valores, ainda que de forma indireta. Quando uma campanha que trabalha símbolos culturais profundos escolhe uma figura com esse histórico, a marca assume o risco de ser associada a esse campo ideológico.

Não há, no discurso da atriz, uma mensagem política explícita. E é justamente aí que reside a eficácia da comunicação simbólica: a mensagem não precisa ser dita para ser compreendida.

Família controladora, contexto político e coerência simbólica

A Alpargatas, fabricante das Havaianas, é controlada pela Itaúsa, grupo ligado à família Moreira Salles. Integrantes dessa família já manifestaram apoio público ao presidente Lula e ao campo político que hoje ocupa o governo federal.

Isso não significa, de forma alguma, que exista uma ordem direta ou uma reunião secreta para produzir propaganda ideológica. Esse tipo de leitura seria simplista. O que existe — e isso é amplamente estudado no campo da comunicação — é uma coerência simbólica entre visão de mundo, escolhas culturais e estratégias de marca.

Empresas não são entes neutros. Elas refletem, ainda que indiretamente, os valores, percepções e alinhamentos de seus grupos dirigentes.

Publicidade como ferramenta da guerra cultural

Vivemos um período em que a política deixou de se restringir a partidos, eleições e discursos oficiais. Ela se deslocou para o campo da cultura, do entretenimento, da publicidade e da linguagem. Essa é a essência da chamada guerra cultural.

Nesse cenário, a propaganda se torna uma das principais ferramentas de disputa simbólica. Não se busca convencer racionalmente, mas normalizar ideias, ressignificar valores e desconstruir símbolos tradicionais.

A mensagem é sutil, quase invisível. Justamente por isso, eficaz.

O contraste com 2014: Romário, sorte e contexto

Um bom contraponto é a campanha das Havaianas na Copa de 2014, com Romário. Ali, o uso dos símbolos era direto e coerente com o imaginário popular: Romário ficava com o pé direito (a sorte) e enviava o pé esquerdo a Maradona, reforçando a ideia de azar para o adversário.

Não havia polarização patológica. Não havia guerra cultural instalada. O símbolo era usado para reforçar uma crença cultural, não para desconstruí-la.

O contexto muda tudo.

Boicote não é solução — mas neutralidade também não existe

Sou contra boicotes. Eles empobrecem o debate e infantilizam a discussão. Mas também sou crítico de campanhas publicitárias que, conscientemente ou não, alimentam a radicalização cultural em um país já profundamente dividido.

Negar o viés simbólico dessa propaganda é ingenuidade. Tratá-la como panfleto político explícito também é exagero. O ponto está no meio: ela se insere, sim, na disputa cultural que antecede o ciclo eleitoral de 2026.

E é justamente por isso que merece ser analisada, debatida e questionada.

Porque, no Brasil de hoje, nenhuma grande mensagem é apenas publicidade.

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